O segredo do rio — a marca da amizade
Recentemente assisti a minissérie mexicana O segredo do rio (disponível na Netflix), que mostra a relação desde criança e, depois adulta, entre dois rapazes, amigos e que guardam um segredo.
Gostei bastante dela, ainda mais no que se refere ao modo como a relação dos meninos se dá, um deles é muxe (termo para designar pessoas trans na cultura da região em que a série é ambientada) embora ainda não saiba bem disso, o outro vive dentro de uma cultura machista personificada na figura do pai. Eles se tornam amigos e não há nada nessa relação ainda na infância que demonstre o contrário, ainda que todas as pessoas ao redor digam ou levantem suspeitas de que os dois sejam namorados. Inclusive, o segredo do rio tem relação com esses dois mundos, o das muxes e o do machismo e da misoginia que deságua na violência contra pessoas lgbtqiapn+.
É essa relação de amizade entre os dois meninos de 09 anos de idade que me fez mais do que tudo, gostar da série. Eles se gostam, mas de uma forma fraterna, muito diferente de várias outras produções audiovisuais que sempre tensionam a narrativa com um gostar que vai pro lado amoroso ou do desejo sexual. Em OSegredo do rio, eles são crianças e várias vezes isso é mencionado. São crianças que brincam e se gostam como crianças, que obviamente sentem que esse gostar fraternal é um laço bastante forte, mas que não o entendem como algo fora do âmbito da amizade, como as pessoas ao redor deles sempre acabam apontando como possibilidade.
E isso me leva para uma outra questão que tenho pensado nos últimos tempos e que a série só fez reforçar, que é a relação entre homens héteros e homens lgbtqiapn+, que aos olhos da sociedade é sempre pautada por uma relação de desejo, como se não houvesse a possibilidade entre eles de algo que não fosse o desejo de um relacionamento amoroso ou o desejo sexual.
Digo isso pensando em situações que vejo ou que vivenciei recentemente. Das que fui testemunha, são sempre brincadeiras entre homens que se sabem héteros e que se permitem “algo gay”, porque, ao meu entender não haveria a possibilidade de se suspeitar da masculinidade deles.
Essa percepção está ancorada nas situações pessoais por mim vividas, que é a de sempre que eu elogio um homem que se apresenta na sociedade como hétero, há um desconcerto, um constrangimento e uma brincadeira por parte dos outros, pondo em suspeita a masculinidade do elogiado e que sempre leva para mim, que tece o elogio, como o desejo sexual pelo outro.
Não se pode elogiar um homem, sendo outro homem, ainda mais quando se um deles, o que elogia, é gay. Se uma mulher faz o mesmo, não há brincadeira e, na maioria das vezes, nem indicativo de que o elogio tenha partido de algum desejo sexual. Encara-se simplesmente como a coisa é: um elogio.
E isso para mim é sempre frustrante, porque como um homem gay que precisou durante muitos anos reprimir os afetos, sinto que ainda não posso fazê-lo, me sinto mesmo entre pessoas progressista amordaçado e impedido de estabelecer de fato uma proximidade maior com as pessoas.
Esse machismo que nos castra afetivamente também é algo que aparece em O segredo do rio, na relação anos depois entre os dois protagonistas quando eles se reencontram, o que também contribuiu bastante para eu ter gostado da série.