ENTENDENDO O LUGAR DA LITERATURA INSÓLITA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA DENTRO DA CRÍTICA LITERÁRIA NACIONAL ¹
Boa tarde a todas as pessoas presentes, aos colegas que estão comigo compondo a mesa e aos mediadores.
A minha fala busca inserir o tema proposto dentro da perspectiva da crítica literária, de como ela recebe e avalia as obras de caráter insólito, ou seja, as obras que são compostas pelo suspense, horror e imaginário mencionados no título desta mesa. Isso significa que essa fala parte dos meus estudos e leituras sobre o assunto, da leitura de textos em prosa de ficção insólita contemporânea nacional e do que é dito (ou o que não é dito) sobre eles. É preciso marcar também que eu não sou um especialista no assunto, mas um interessado que está inserido dentro dos debates e do que é produzido sobre o tema e vinculado ao espaço acadêmico. Outro aspecto a ser considerado é o de que esse é um recorte específico sobre a recepção de obras de teor insólito, há outros espaços em que ela é tratada de uma forma completamente diferente e com uma importância que ultrapassa muitas vezes a que o senso comum ou mesmo a tradição literária acadêmica (em vários espaços) dá ao gênero. Ressalta-se isso, uma vez que há dentro do espaço acadêmico diversos grupos de estudo do gótico, do fantástico e do insólito, como é o caso do grupo da UNIFESSPA, o Grupo de Estudos do Fantástico na Amazônia, que tem como coordenadora a professora doutora Suellen Cordovil.
A princípio, ao analisar o rol de obras e autores que compõem a nossa tradição literária, percebe-se que não há quase a presença de escritores estritamente dedicados à produção de obras de teor insólito e, as obras que se inscrevem nesse gênero ficcional escritas por autores renomados são, em sua maioria, ignoradas pela crítica. Quando isso não ocorre, elas não são consideradas pelo seu viés fantástico, e sim em como esse elemento da narrativa está inserido no se considera traços de identidade nacional. Por exemplo, obras como A luneta mágica, de Joaquim Manuel de Macedo, ou Sobre a imortalidade de Rui de Leão, de Machado de Assis se inserem no primeiro caso, enquanto Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, encontram-se como representantes do segundo. Na narrativa de Rosa, temos o regionalismo alçado ao universal. Já no texto de Veríssimo temos todos os elementos da narrativa de outros textos em prosa de ficção do autor mais conhecidos e mesmo estudados.
Estas obras com teor escancarado de conteúdo insólito se encontram citadas e comentadas, junto a outras, no livro Fantástico brasileiro, uma história da literatura insólita no Brasil.
Além disso, ainda há o fato de outros textos, por motivos vários, nem serem pensadas ou trabalhadas dentro das analises realizadas em sala de aula pelo viés insólito, haja vista que a interpretação tradicional já se encontra tão consolidada que ela toma todo o espaço dedicado à discussão da obra. É o caso de Dom Casmurro, sempre lido dentro do viés realista e/ou psicanalítico.
Contudo, para quem conhece as características do gótico e narrativas do estilo como Um conto de natal, de Charles Dickens, percebe-se no modo como se estrutura a narrativa e como os elementos são dispostos, que há ali um quê de fantasmagoria, como foi discutido em um encontro com a pesquisadora Doutora Renata Phillipov, da UNIFESP, organizado pelo grupo de estudos GELIT em 2021.
Isso mostra o lugar da narrativa insólita dentro da tradição dos estudos e da crítica literária, de algo menor que está a serviço de outros elementos ou pertencente a um não-lugar. É algo que está, de certo modo, posto em relação ao já produzido literariamente. Mas, como é que isso está acontecendo neste momento com a produção contemporânea, de autores vivos que neste momento estão escrevendo e publicando, como é o caso dos colegas que estão ao meu lado nessa mesa essa tarde?
Para responder essa pergunta, preciso retomar a pesquisa desenvolvida durante o meu mestrado neste programa de pós-graduação. Em uma das etapas da pesquisa tive que analisar como meus informantes, todos booktubers e não pertencentes ao curso de Letras à época, avaliavam as obras sobre as quais falavam em seus canais no youtube. Ou seja, quais critérios de avaliação eram adotados e como.
A obra definida para desenvolver o trabalho, a partir dos critérios de seleção adotados na pesquisa, foi Cabeça do Santo, da escritora cearense Socorro Acioli, que foi a obra com maior ocorrência de leitura e de análises no corpus coletado entre os informantes durante os anos de 2016 e 2018.
Assim, para realizar a análise e ter condições de compreender a forma como os informantes recebiam a obra de Socorro, precisei estabelecer também contrapontos. Portanto, fez-se necessário que eu também lesse a obra e a analisasse, assim como ler e analisar a forma como a crítica tradicional, a saber: de viés acadêmico, a recebia.
A resenha acadêmica encontrada à época foi a do Professor de Literatura Brasileira da UFRGS, Luís Augusto Fischer, publicada na Ilustrada da Folha de SP, na qual ele avalia obra sob a luz do realismo mágico hispano-americano, uma vez que Socorro teria desenvolvido inicialmente o enredo do romance em uma oficina de escrita ministrada pelo escritor Gabriel Garcia Marquez, como ela mesmo atesta em um dos paratextos que acompanham a edição da Companhia das Letras, de 2014.
O romance apresenta sim elementos fantásticos e lembra bem remotamente a obra Pedro Páramo, de Juan Rulfo, como afirma em sua análise Fischer. Contudo, avaliar a obra por essa perspectiva desconsidera diversas outras características da prosa de Socorro, muitas delas provenientes de outras tradições literárias circunscritas não apenas a literatura brasileira de um modo geral, como de uma tradição literária geograficamente marcada, a nordestina. Tradição essa que está representada desde as obras de Ariano Suassuna com talvez o seu mais famoso texto, O Auto da Compadecida, até uma das obras mais recentes do mercado editorial brasileiro: O Auto da Maga Josefa, de Paola Saviero.
Por não ter levado em consideração esses outros aspectos da escrita de Socorro Acioli, Fischer acaba por afirmar, como fica explícito no título de sua resenha que a obra “não alcança gênero fantástico”, porque o entende apenas como a possibilidade hispano-americana, a qual ele utiliza como régua para medir a potência do texto da escritora cearense.
Essa metodologia de análise, a de pôr em comparação as obras, é algo muito comum no processo de avaliação e valoração dos textos, uma vez que uma é iluminada por outra já consagrada pela crítica literária. O romance Torto Arado, de Itamar Vieira Jr., por exemplo, ao ser resenhada por diversos críticos na imprensa periódica impressa e digital foi comparada a Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, como forma de atestar o valor e a força dela dentro da produção literária brasileira contemporânea, por se inscrever dentro de uma tradição de textos que ressaltariam o Brasil profundo, uma espécie de espírito nacional imaculado, ideia bem recorrente nos fins do século XIX, que reivindicava para o Brasil não-urbano, o do sertão, a verdadeira alma da nação.
Esse Brasil profundo, assim como na obra de Itamar Vieira Jr., também é reivindicada na maioria das análises feitas de Gótico Nordestino, de Cristhiano Aguiar, algo que eu contesto no texto “Nem Brasil profundo e nem regional: O Gótico Nordestino de Cristhiano Aguiar”, publicado na oitava edição do jornal Jamburana — tremor literário.
A contestação se dá, entre outros motivos, por perceber que ela está pautada por os contos que compõe a coletânea estarem ambientados em um espaço que não o dos grandes centros sudestinos, além de apresentarem, em sua composição, situações e o imaginário nordestino.
Ainda que fora do eixo sudestino, os contos de Gótico Nordestino, a ambientação não transcorre somente em espaços geográficos mais tradicionais das prosas de ficção situadas na região nordeste e que povoam as nossas memórias quando delas falamos, mas em capitais ou centros urbanos como Campina Grande e João Pessoa. Um dos contos se dá em um apartamento de luxo, que poderia estar em qualquer capital do mundo. Outro tem como pano de fundo a Ditadura Militar e lembra prosa rascante de Otto Lara Rezende em alguns dos contos de Boca do Inferno.
Considerar que a prosa de Cristhiano Aguiar ou de outros autores revelam um Brasil profundo por tratarem de temas fantásticos ou serem ambientadas em outros espaços geográficos nos levaria a crer, dialeticamente, que há obras e escritores que escrevem de forma superficial por justamente situarem a prosa deles nos centros literários e com elementos e personagens insólitos do cânone ocidental.
Todavia, não é dessa forma que a crítica avalia essas obras que não representam o Brasil profundo. A essas obras se dá nomenclaturas como fantasia urbana, realismo fantástico, como são o caso de autores contemporâneos que têm em seu público majoritário jovens-adultos, a saber, por exemplo: Carol Chiovatto, Felipe Castilho e Eric Novelo.
Ora, eles também abordam um Brasil profundo, se considerarmos que isso realmente existe e está presente em nossa produção literária. É um Brasil profundo que não desaparece só porque os lugares se transformaram em grandes centros urbanos, muito pelo contrário. Existe em forma de resistência. O sobrenatural vivendo e convivendo com um mundo concreto em que o invisível só pode ser percebido por aqueles que ainda resguardam sentidos mais aguçados, que não perderam a conexão com o outro lado do véu.
E é aí que passamos a pensar a produção em prosa de autores considerados regionalistas, exóticos e que trabalham com mitos, lendas urbanas ou como tem sido mais abordado em espaços acadêmicos há um bom tempo, como mitopoéticas. Estes textos, como os escritos por Walcyr Monteiro, Preto Michel ou como Iaci Gomes, trazem em sua composição justamente elementos tradicionais da cultura local, essa parte “folclórica”, “exótica”, que desperta o interesse e a curiosidade de quem não conhece o Brasil, ambientados nesses espaços tomados, mas não totalmente, pelos centros urbanos.
No que se refere ao aspecto literário muitas questões poderiam ser postas em discussão, a depender da linha que orienta o pensamento sobre estética ou do que é uma obra literária, porém, a meu ver, no que diz respeito ao insólito, enquanto algo revelador de uma característica nacional, de espírito e alma da nação, retomando aqui o ideal romântico mencionando mais no início dessa fala, estão em parelha. E isso se dá por todas elas serem estruturadas nessa coexistência entre realidades distintas e que revelam a pluralidade do Brasil e das possibilidades literárias suscitadas por elas.
Assim, tendo em vista o que foi brevemente aqui exposto, penso que, no âmbito da crítica de literatura brasileira insólita, tanto para quem a produz como para quem a consome, lê-la e analisá-la pelo que ela apresenta e em que em condições ela é apresentada, contestando os valores e conceitos. Porque esse é o trabalho do crítico, mais do que ler obras sempre pelas mesmas teorias e conceitos e ideias, desconsiderando as condições históricas de composição, as obras em diálogo. Pois ainda que cada obra seja um universo único, elas não estão sozinhas no mundo. É o caso aqui de Gótico Nordestino, de Cristhiano Aguiar, em que muitos críticos e leitores, pelos textos e relatos produzidos sobre a obra, demonstraram certa dificuldade em associar o conceito de gótico ao lugar ensolarado do Nordeste, revelando assim o desconhecimento básico do que é gótico e as potências dele e do desconhecimento do Brasil para fora do eixo sudestino.
Obrigado a todos os presentes pela atenção.
¹Fala apresentada na mesa de abertura “Literatura Contemporânea: entre Suspense, Terror e Imaginário”, no XIX SEPA do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (PPGL/UFPa), em 05 de dezembro de 2022.